Sofia dos Santos + Niccolò Rossi
Eppur si muove (no entanto ela se move), o título deste trabalho, remete-nos para uma suposta, e contudo polémica frase de Galileu que a disse em surdina, depois de renegar diante da inquisição que a Terra se move em volta do Sol. Do seu ponto de vista simbólico, esta expressão sintetiza a teimosia das provas científicas contra a censura da fé, um importante statement da classe científica e da sua revolução contra o autoritarismo. Quatrocentos anos depois a frase não podia ser mais pertinente. No contexto sociopolítico em que vivemos atualmente, com o aparecimento da chamada Era da Pós-Verdade. De acordo com Ralph Reyes, se a dado momento tínhamos verdades e mentiras, neste momento temos verdades, mentiras e declarações que podem não ser verdade mas que consideramos demasiado benignas, na nossa perspectiva e interesse pessoal, para serem falsas. Assim, eppur si muove, remete-nos novamente para a factualidade das coisas, para o poder que nos é alheio e que certos acontecimentos têm de se realizar de um certo modo que não podemos controlar, remete-nos neste trabalho, e citando os autores: “para o movimento e para as tensões do design que a realidade vinícola atingiu e a que obedece. Remete para as mudanças na significação do vinho”. Escrevem ainda os autores que “as ideias feitas sobre a realidade falham muitas vezes pela falta de mundivisão e por não lerem frequentemente o lugar para onde a realidade vai, e esse não é trivial. Essa postura, muitas vezes, atenta apenas contra a inteligência porque o fluxo e movimento é inevitável, e nem sempre significa que tenderá naturalmente para um equilíbrio ou que representa um incremento”.
Este é um trabalho colaborativo entre os dois autores, que procuraram influenciar-se um ao outro. As construções cerâmicas de Niccolò Rossi baseiam-se nos desenhos de Sofia dos Santos, que por sua vez procura influenciar-se pelas linhas e fluxos existentes no Douro, na sua realidade mais conhecida, mas também nas realidades paralelas, e talvez menos românticas. A exposição conjuga duas propostas de linhas, as melted lines [linhas derretidas] e as mechanical lines [linhas mecânicas], com base nas quais podemos alegar que ambas evocam um movimento da realidade num determinado sentido.
Melted lines conformam-se à fisiologia do terreno e à natureza das vindimas, remetendo para a organicidade intrínseca na produção de vinho. Nas entranhas destes terrenos flui água de uma forma que não é óbvia. A água entranha-se no xisto que por sua vez a liberta de forma lenta, permitindo a cultura sem rega, e a criação de um néctar em estado praticamente concentrado, beneficiando assim o resultado final na produção do vinho, onde a água é apenas misturada em fase posterior. Melted lines evoca um processo pelo qual uma linha abandona a representação do homogéneo, do uniforme, do constante, do ordenado, do regular e do metódico; do unitário, para abordar o aspecto daquilo que é combinado, fundido, fusionado em níveis não óbvios e evidentes.
Por sua vez, os painéis cerâmicos Fluid Valley [Vale fluído], de Niccolò Rossi, procuram transcrever esta fluidez dos elementos orgânicos, criando uma forma que ganha vida própria e que se desenha a si mesma, perdendo o artista o controlo absoluto de como a forma física do material se molda à realidade da superfície e como a própria cor desenha um fluxo. No final, temos uma forma que nos remete inteiramente para a morfologia dos terrenos do Douro.
Mechanical lines por sua vez remetem para o movimento e para a tecnologia que fazer vinho impõe nos dias de hoje. Ao lado da fluidez que aparentam os terrenos da vindima, existe um fluxo tecnológico, uma modernização, que ultrapassa o natural e o orgânico, composto por linhas de transporte, retas, auto-estradas, linhas da internacionalização de um produto que é fruto das tensões da globalização. Mechanical lines, tal como o título indica, são linhas construídas a partir de movimentos mecanizados que extrapolam o natural, o humano. Com base nesta ideia, Niccolò Rossi construiu um “totem” com o título de Etopico, uma palavra inventada por si que lhe remetia para a ideia de ET + Utópico [Utopia extraterrestre], sendo que a base desta peça escultórica envolvida por cerâmica é cartão canelado, extraído de caixas de transporte industrial, e cujo fabrico dota este material de linha próprias, geométricas e mecânicas.
Tornando minhas as palavras de Sofia dos Santos e Niccolò Rossi, não é de estranhar que as metáforas sensoriais se multipliquem pelas linhas, pois estas passam a ser um lugar onde as fronteiras se dissolvem, os contornos se derretem e tornam líquidos; e o unitário se desvanece gradualmente. Um lugar onde diferentes essências, cernes, se misturam, unem, casam, como o vinho que “discorre” aromas pelo paladar, que ganha forma pelo tom. Este é o lugar onde muitas ideias diferentes existem juntas, frequentemente misturando-se e produzindo qualquer coisa nova. Nesta exposição as linhas são usadas e derretem-se numa matéria liquida, a cerâmica, que absorve a forma das linhas e a solidifica em qualquer coisa combinada, mas nova. O resultado é um objecto que estende as linhas ao real e faz do real uma linha, transpondo o limiar entre a representação e o representado, com a certeza que ambos são sempre construções de um real.